segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Preconceito e Política

Senhoras e Senhores! Publicando de tempos em tempos, mas sempre refletindo junto com Hannah Arendt. Aguardo, como sempre, severas e tortuosas críticas. Esse pequeno texto foi escrito quando apresentei uma comunicação em um Colóquio. Abraços!


O Problema (Político) do Preconceito



Abordar a questão do preconceito no sentido político do termo, ou seja, no sentido do compartilhamento do espaço público em que vivemos requer que mantenha-mos uma distância, nada segura, daquilo que se denomina de privado. Nada segura, pois o preconceito se manifesta também e talvez principalmente na esfera privada da vida. Ao proferirmos a palavra preconceito estamos nos referindo a algo que só existe e é relacionado quando se refere a uma época e uma sociedade, ou seja, algo que diz respeito aquilo que se construiu culturalmente e em conjunto. Para tal empreitada será através dos textos de Hannah Arendt que nos moveremos. A escolha da autora também está diretamente relacionado com o tema em questão. Hannah Arendt, que nasceu na Alemanha, foi uma fugitiva da perseguição nazista, pois era judia. Suas obras refletem, do início ao fim e com grande maestria, a problemática do totalitarismo, ou seja, dos estados baseados na ideologia e no terror como nova forma de governo. Como é de conhecimento, os estados totalitários, e aqui principalmente em sua vertente nazista,  perseguiram e exterminaram sistematicamente negros, ciganos, homossexuais, judeus, entre outros, em nome da “purificação da raça”, um absurdo que deve ser lembrado para que jamais se repita na humanidade. Pensamos ser importante que o leitor tenha em mente o que mencionamos acima para que possa entender o porque  da escolha da autora em questão para se tratar de um tema que hoje parece estar como que em voga: o preconceito.

Começamos nosso trabalho com uma pergunta que deve nortear nossa empreitada: quais as características do que chamamos de preconceito? Para a autora preconceito é algo de que compartilhamos uns com os outros e “representa em si algo político no sentido mais amplo da palavra -  ou seja, algo a se constituir num componente integral da questão humana, em cuja órbita nos movemos a cada dia”[1], algo que faz parte do cotidiano. Ao tratar da questão do preconceito em relação a política, Arendt afirma que: “nenhum homem pode viver sem preconceitos, não apenas porque não teria inteligência ou conhecimento suficiente para julgar de novo tudo que exigisse um juízo seu no decorrer de sua vida, mas sim porque tal falta de preconceito requereria um estado de alerta sobre-humano”[2]. A primeira conclusão que podemos tirar dos trechos acima é que os preconceitos fazem parte da vida do homem, como algo inerente ao fato do homem compartilhar o mundo com seus semelhantes. Se o preconceito não deve ser motivo de espanto então quando é que ele passa ser motivo de preocupação? Ou, dito de outra forma, quando é que o preconceito passa a ter relevância na convivência entre os homens? E pensamos que é na própria questão da convivência que encontramos algumas pistas.

Para responder as questões levantadas, nos reportamos ao fato do homem compartilhar um mundo com os demais seres humanos em sua pluralidade, ou seja, ao fato de que não é o homem que habita o mundo, mas sim os homens, com sua igualdade e diversidade. “A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se a si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons. Poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas”[3]. A ação é, para Arendt, uma atividade humana fundamental, responsável pela formação e preservação de corpos políticos. O homem só é capaz da ação quando possui, para tal, um lugar assegurado, o espaço público-político, espaço em que se distingue dos demais, que revela sua singularidade. É na modalidade da ação e do discurso que o homem percebe e é percebido pelos demais.

Como mencionamos acima, é na convivência humana, no fato da pluralidade que começamos a entrever algumas respostas, a saber, que é necessário um espaço público-político para que o homem possa, em sua igualdade perante os demais, mostrar-se em sua diferença. Ou seja, para que possamos falar em política, temos que garantir que toda a diferença possa ser respeitada. Todo homem, em sua singularidade e em sua igualdade, deve ter sua vez para poder mostrar quem inconfundivelmente é através do discurso e da ação. Se todo preconceito é como que um juízo pré-formado o espaço público-político, o espaço do discurso e da ação, a troca de opiniões, ou de formação de juízos, é o momento em levamos em conta a consideração do ponto de vista de outras pessoas e somos capazes de julgar novamente aquilo que tínhamos como certo ou errado, bem como formar novos juízos. É o momento que o preconceito sobre algo pode mudar. Certamente, quando não encontramos um espaço adequado para a ação e o discurso, é que os preconceitos se tornam relevantes para a convivência humana. É o momento de reivindicar, de se fazer ver e ser ouvido. Pois vivemos em uma pluralidade e é ela que dá a característica ao que chamamos de humanidade. Tentar privar todo e qualquer grupo de ser visto e ouvido é tentar destruir a pluralidade, e foi o que se fez nos regimes totalitários, e ainda se faz em muitos países que ignoram e tentam excluir do cenário político os considerados diferentes. Para um preconceito sobreviver deve-se minar qualquer tentativa de discussão, qualquer espaço público-político em que opiniões sejam trocadas e proferidas, ou seja, evitar a formação de novos juízos.

Os famosos: dizem, “eu acho que é”, “alguém disse que”, podem revelar um preconceito. Quando nos movemos somente com preconceitos e não com juízos, este que pode ser entendido como uma capacidade de troca de opiniões[4], colocamos em risco o próprio âmbito político, que se baseia na livre troca de juízos. “O perigo do preconceito reside no fato de originalmente estar sempre ancorado no passado, que dizer, muito bem ancorado e, por causa, disso, não apenas se antecipa ao juízo e o evita, mas também torna impossível uma experiência verdadeira do presente com o juízo”[5]. Um dos exemplos do perigo de perder-se o âmbito político e basear toda e qualquer ação política em preconceitos é o nazismo, que nega a pluralidade humana e tenta, através da ideologia e da violência, formar um única sociedade como se todos fossem iguais e não houvesse nem identidade e nem singularidade próprias de cada ser humano.

Mas não fiquemos só nos exemplos de estados totalitários, aqui mesmo, no Brasil, partidos políticos, principalmente as bancadas evangélicas e católicas, esquecem do Artigo 5º da Constituição Brasileira, onde se afirma que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e tentam vetar qualquer tentativas de inclusão das questões homossexuais para dentro das discussões do congresso brasileiro. Isso revela não só o preconceito, mas a própria ignorância daqueles que deveriam ter por base o entendimento de que a pluralidade é a lei que rege a convivência humana. E mais, “se na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente sua identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo humano”[6], privar qualquer homem ou mesmo um grupo de homens de ser visto e ouvido, é atentar diretamente a sua qualidade de ser humano e estar entre seus iguais que são diferentes entre si. Toda e qualquer pessoa, partido político ou mesmo estado soberano que tente obstruir a esfera pública-política com se existisse um único pensamento e da mesma maneira levar preceitos religiosos como verdades, esquece que essa esfera não é o de verdades mas sim da opinião.

Trazer para a vida pública-política idéias ou credos religiosos é confundir e misturar duas coisas que são completamente diferentes, necessárias uma a outra, mas diferentes quanto a especificidade de cada uma: a esfera privada e a esfera pública. Por mais que a modernidade se caracterize ao que chamamos de esfera social, um híbrido das esferas privada e pública, não possuímos o direito de tratar as questões que dizem respeito a sociedade como um todo como se estivéssemos decidindo sobre que grama plantar em nosso jardim. Trazer pensamentos únicos e mesmo ideais ou crenças religiosas para discutir questões de racismo, sexualidade, gêneros, e entre outras, é inaceitável. É mais que um erro ou ignorância, é atentar contra o fato de que somos uma pluralidade. E foi exatamente isso que os estados totalitários fizeram: tentaram aniquilar, assassinando em grande escala judeus, negros, homossexuais entre outros. Mas como não estamos em tempos de estados totalitários, ao menos não declarados, salvo talvez a Venezuela, lembramos ao nosso políticos que tentar privar de direitos os cidadãos, discriminando, seja aberta ou mascaradamente, contitui crime. E preconceito é crime!

Às vezes quando paramos e escutamos certos discursos referentes a questões homossexuais e afins parece que voltamos a Idade Média, em que eram os ideais religiosos que dominavam o panorama privado e político. Lembro aos ditos homens políticos que a Modernidade chegou e com ela, junto aos seus problemas e encantamentos, a separação entre estado e igreja. Graças! Nem mesmo mais os filósofos, ao menos em sua maioria, tentam regrar a vida política com suas verdades, pois mesmo estes, se deram conta de que não são as verdades que devem regrar a vida política, que é instável e muda, mas sim a opinião. Opinião que, se dado o devido espaço para que haja diálogo, é capaz de fazer preconceitos mudarem através da formação de novos juízos. Mas não estamos afirmando que somente quando estamos no espaço público-político somos capazes de formar opinião ou mesmo de julgar corretamente. Nem afirmamos que a condição para que se formem juízos seja somente quando estamos na companhia de outras pessoas. Afirmamos que o espaço público-político é condição plena para que juízos sejam formados, porque nesse espaço estamos em contato com a pluralidade que é manifesta quando todos aparecem uns aos outros. Mas então, quando certos grupos são excluídos do cenário público-político ou mesmo em situações emergenciais, por exemplo os estados totalitários, como ter certeza de que estamos julgando levando e conta a pluralidade?  A resposta está na própria atividade de julgar.





[1]    ARENDt, Hannah. O que é polítca?, p. 27-28
[2]    _____________________________, p. 28.
[3]    _________________.  A Condição Humana, p. 188.
[4]    Expressão utlizada por Arendt.
[5]    ARENDT, Hannah. O que é política?, p. 30-31.
[6]    _______________. A Condição Humana, p. 192.